Intervenção
Do bicho ao ‘business’: Reflexões sobre as transformações na
gestão e no controle
da loteria do jogo do bicho
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Rômulo Bulgarelli Labronici
UFF
Reprodução
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Em 19 de junho de 2024, a Comissão de Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou, por 14 votos a 12, o projeto de lei (PL) nº 2.234/2022, de autoria do deputado federal Renato Vianna (MDB/SC), que autoriza o funcionamento de bingos e cassinos no Brasil, libera a prática de corridas de cavalo e, em seu ponto mais polêmico, legaliza o jogo do bicho. Apesar da votação apertada, o projeto será enviado ao Plenário do Senado para ser debatido e votado. Por mais que a atual controvérsia em relação à possível regulação, e até mesmo legalização, dos jogos de apostas esteja novamente em pauta no debate público, seus desdobramentos ainda são incertos. Como teria dito Júlio César, “a sorte está lançada”. Entre as muitas leituras possíveis sobre o resultado da votação do PL, é possível enxergá-lo a partir das atuais mudanças no cenário dos jogos de apostas no Brasil, que têm ganhado força com a implementação de jogos eletrônicos e a crescente expansão do mercado de apostas on-line, as chamadas bets. Apesar disso, a tradicional loteria do jogo do bicho, que tem mais de cem anos de história, não ficou para trás e vem também ganhando novos espaços de visibilidade no cenário nacional.
A partir de entrevistas concedidas por atores diretamente envolvidos na exploração do jogo do bicho, proponho uma reflexão sobre o atual momento dos bastidores desse mercado para evidenciar algumas das possíveis transformações pelas quais a organização da loteria vem passando nos últimos anos e que têm na dimensão dos conflitos uma importante chave de observação. Com a saída dos antigos membros da chamada “cúpula do jogo do bicho”, as novas gerações disputam a herança dos negócios da contravenção e, consequentemente, trazem um novo espírito para suas formas de gestão.
Ao longo de seu percurso no mercado de diversões com jogos de apostas, o jogo do bicho perdeu espaço e rentabilidade para a Loteria Esportiva, criada em 1970 e hoje denominada Loteca, e para as loterias criadas pelo Estado durante o governo ditatorial (SIMAS, 2024, p. 147). Atualmente, tem perdido espaço também para os jogos eletrônicos e as máquinas caça-níqueis. Entretanto, mesmo sendo apontado como uma atividade decadente, cujos jogadores estariam envelhecendo de maneira vertiginosa, e sem uma renovação aparente de público (SOARES, 1993), o bicho permanece como uma atividade cotidiana nos bares e esquinas das cidades (LABRONICI, 2012), e tem ganhado um interesse renovado a partir da produção de documentários, da realização de entrevistas e da coleta de relatos de atores ligados a esse universo.
No final de 2023, a plataforma de streaming Globoplay lançou a série documental Vale o escrito: A guerra do jogo do bicho, que investiga as origens e alguns dos dilemas dessa loteria no Rio de Janeiro. Ao longo de sete episódios, o programa aborda a loteria desde seu início, no século XIX, até o envolvimento mais recente das milícias, passando pela criminalização das apostas e dos jogos de azar e pelos investimentos dos bicheiros no carnaval e no futebol. Para isso, conta com entrevistas exclusivas cedidas por atores envolvidos no jogo — bicheiros e seus herdeiros, além de suas esposas, familiares e agregados —, que compartilham suas memórias e os pormenores do negócio. A série logo se tornou a mais assistida na plataforma, atraindo grande atenção do público e tornando-se assunto recorrente em rodas de conversa e debates jornalísticos e acadêmicos em todo o país, em meio à realidade social presente dos conflitos envolvendo tráfico de drogas, milícias e as próprias famílias do jogo do bicho. Devido ao sucesso de audiência, a plataforma prometeu novas temporadas, que abordarão outras famílias de banqueiros do bicho da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) — ver Campos e Bezerra (2024).
Vale o escrito foi antecedida por outras duas séries de sucesso: Lei da selva: A história do jogo do bicho (2022), produzida pelo Canal Brasil, e Doutor Castor (2021), produzida pela própria Globoplay. Enquanto a primeira adota uma perspectiva histórica, mostrando a criação da loteria para financiar o antigo Jardim Zoológico de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, sua incorporação pela cultura popular carioca e seu papel central na estruturação e organização do crime no país, a segunda conta a história de um dos principais agentes da contravenção do Rio, Castor de Andrade. Com o lançamento dessas séries, o jogo voltou (1) às telas e ao imaginário da cidade, em meio à crescente onda de disputas e mortes a ele relacionadas. A produção recente e continuada de tais materiais tem se apresentado como um movimento de ampliação do interesse por ele, pelas apostas e pelos constantes conflitos que as disputas intrafamiliares no jogo têm proporcionado. Nas palavras de Shanna Garcia, filha e neta de banqueiros do jogo:
– Tem de tudo. Tem morte, tem traição, briga pelo dinheiro, briga pelo poder. Eu acho que tem de tudo e realmente aquilo que a gente vê em novela, vê em filme.(2)
A lógica de continuidade do jogo do bicho obedece a algo como um uma lei natural dos negócios ilícitos e garante a sobrevivência daqueles que detêm maior poder de adaptação. O jogo não nasce com uma estrutura empresarial, esta se consolida com o tempo. Para a manutenção de suas formas de gestão e regulação nas ruas, demandou a produção de uma organização capaz de permitir uma sustentação político-econômica e territorial. A divisão territorial foi pautada por uma incessante busca por monopólio dentro de certos limites de uma convivência “pacífica” e se estruturou e se organizou nos moldes da máfia italiana (OTÁVIO e JUPIARA, 2015). As alianças e afinidades interpessoais são, nesse mercado, formas historicamente estabelecidas para a manutenção da segurança e da estabilidade e para a administração de conflitos entre seus atores, a fim de garantir a continuidade da loteria, que ainda se estrutura por uma forte relação de parentesco e afinidade.
A hereditariedade é um aspecto importante da organização territorial do jogo do bicho e, em muitos casos, se torna um importante fator de legitimação das trajetórias de banqueiros, como mostrou Castor de Andrade, em entrevista concedida à revista Veja, em 1994 (apud OTÁVIO e JUPIARA, 2016, p. 105), ao descrever parte de sua trajetória:
– Primeiro controlei o jogo, depois fui fazer faculdade. Meu pai nunca teve gosto pelo jogo (...). A mania dele era gado (...) foi cuidar dos bois e abandonou as bancas de Bangu. Minha mãe me chamou porque eu era o filho mais velho, e mandou eu tomar conta, antes que a família perdesse o controle. Eu estava com 20 e poucos anos e não entendia nada de jogo.
Como no caso de Castor de Andrade, o início da carreira de um banqueiro no bicho em geral ocorre a partir da aquisição de pontos herdados em seus núcleos familiares. Entretanto, há outros casos, como o de Aílton Guimarães Jorge, conhecido como Capitão Guimarães, em que as carreiras começaram a partir de uma vinculação de afinidade com algum banqueiro já estabelecido. Antes de se tornar um homem forte no controle do jogo, a ambição de Capitão Guimarães já era conhecida no Rio de Janeiro e em Niterói, como ele mesmo conta:
– Eu não sou santo, mas não sou bandido (...). Eu, com três anos só [de envolvimento no jogo do bicho], o Castor [de Andrade] me chamou pra pertencer à direção e eu levei algumas ideias de organização que foram aceitas pelos amigos e que vigora[m] até o dia de hoje.
O banqueiro é apontado como um dos principais articuladores da divisão territorial do jogo, tendo implementado a padronização que culminou na cartelização de grandes banqueiros:
– O partido político mais organizado do estado aqui do Rio se chama jogo do bicho, porque nós temos diretórios nos 93 municípios do estado, uma direção única e nós não temos briga. Por quê? Nós vendemos o mesmo produto, com o mesmo preço, com áreas definidas. Então nós somos amigos entre nós, não temos motivos para não sermos amigos. (Capitão Guimarães)
Esses e outros relatos sobre trajetórias ascendentes de banqueiros do bicho evidenciam a importância da relação de apadrinhamento, tanto dentro quanto fora das famílias, para o controle da sucessão do direito de explorar o jogo em determinadas regiões. O parentesco e as relações de afinidade se tornam imprescindíveis para a continuidade histórica da loteria e sua legitimidade. Em muitos casos, o uso da força e da violência se apresenta como recurso comum contra aqueles que tentam alterar, modificar ou questionar o sistema de sucessões. Em certos casos, como no de Capitão Guimarães, torna-se a forma legítima de burlar o sistema e adquirir pontos de outros banqueiros. Assim, o direito legítimo de explorar o jogo em determinado território produz constantes tensões entre banqueiros do bicho. Com o envelhecimento e o falecimento de antigos integrantes da cúpula original, muitos atores que estavam de fora do núcleo de tomada de decisões arrebataram para si o protagonismo da loteria. A continuidade do controle por uma rede familiar específica demandou a criação de regras para permitir a transição transgeracional, regular a compra e venda de pontos e definir uma delimitação territorial para o controle de cada banqueiro e seu núcleo familiar:
– Primeiro o jogo, depois a família. É engraçado, né? Porque sem ele, eu não teria criado a família. (Capitão Guimarães)
Atualmente, o vácuo de poder deixado pela morte de alguns desses grandes chefes abriu espaço para que conflitos internos no interior de certos núcleos familiares se desenvolvessem. Além das disputas entre irmãos — ou irmãs, no caso da família Garcia —, ainda há a entrada de novos sujeitos que se aproveitam para tentar entrar na disputa pelo controle do jogo ilegal. Nas palavras de Capitão Guimarães:
– Os problemas são internos, e não de um contra o outro. É como na tua casa: eu não posso impedir você brigar com a tua mulher, mas eu posso impedir de você brigar com o vizinho.
Entretanto, há aqueles que afirmam que, mesmo se beneficiando do poder e dos recursos oriundos do jogo, não desejam para si um espaço no controle das loterias ilegais de suas famílias. É o caso de Gabriel David, filho de um membro original da cúpula, Aniz Abrahão David, conhecido como Anísio, e que se tornou, aos 26 anos de idade, o presidente mais jovem da história da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa):
– Eu sei que eu tô onde eu tô[, que] eu tenho voz, [que] eu tenho moral dentro da Liga, dentro do carnaval, como tive na Beija-Flor, por ser filho do meu pai, sem a menor sombra de dúvidas. Não teria a menor chance de estar onde eu estou se eu não fosse filho dele.
A atual mudança de controle dos donos do jogo é sentida inclusive no escalão mais baixo da loteria. Para o apontador de bicho Domingos, “[e]sses herdeiros do bicho de hoje em dia não sabem ou não se interessam pelo bicho, só querem o dinheiro na conta” (LABRONICI, 2012, p. 72). No mesmo sentido, em entrevista ao jornal RJTV, o gerente de pontos de jogo Luiz Cabral afirmou:
– Hoje em dia, todos os funcionários estão amedrontados porque a briga não está sendo só entre eles lá em cima. Eles estão ameaçando os funcionários. Quem não for trabalhar com eles, já deixaram bem claro que vão matar.
Assim, com a morte e o envelhecimento dos antigos membros da cúpula, o controle do jogo passa a ser renegociado entre aqueles não oriundos de tradicionais famílias do bicho. Garantias e regras outrora consideradas as bases de sustentação e organização dessa máquina são agora colocadas à prova. Uma reconfiguração na macropolítica do jogo é sentida, e tentativas de reelaboração já se tornam evidentes, a exemplo do banqueiro Adilsinho, que, em conversa obtida pela Polícia Federal (PF) por meio de interceptação telefônica, afirmou:
– Já deu, já passou! É outra geração agora! Tem que entender! Não tem santo... É tudo malandro! Tudo bandido mesmo! Trata a gente bem na vaselina, mas quer ser centralizador! A velha cúpula já foi há muito tempo, mas o cara continua cultivando essa ideia. E os que são reféns, continuam com a ideia de refém, pensando na cúpula antiga, que não existe mais (...) O outro verde e branca [o banqueiro Rogério de Andrade, herdeiro de Castor] falou comigo de fazer uma nova organização, só que eu não consigo falar com ele. Eu também quero, eu também quero poder.
Tal afirmação foi feita com base na observação de incompatibilidades geracionais com os banqueiros da velha cúpula. A nova cúpula seria, então, uma resposta aos antigos banqueiros ainda vivos, que seriam, segundo Adilsinho, “centralizadores” e dificultariam outros negócios, como a venda de cigarros contrabandeados. Assim, as renegociações dos antigos acordos, a entrada de novos atores, as disputas por herança e a rearticulação de uma nova cúpula se tornam fontes de conflitos e estimulam o interesse público pelo aspecto gerencial do controle de territórios e pontos de jogo. Além disso, os debates sobre a possível legalização do jogo, apresentados no início deste texto, tendem a adicionar um novo sabor ao caldo da contravenção, como coloca Capitão Guimarães:
– Agora surgiu a legalização. Nós estamos estudando, não pensa que... Eu, antes de morrer, se Deus me der mais algum tempo de vida, eu quero deixar o meu filho empresário. Você já imaginou, depois do Guimarães estar há 50 anos [sendo] contraventor, me chamarem de empresário? Vou ficar até tonto.
Com isso, creio ser possível apontar que a entrada das novas gerações ocorre em um contexto de transformação e indica que, em alguma medida, poderá afetar a dinâmica do jogo em seus mais variados aspectos. Trata-se de pessoas com ideais embasados em moldes de empresariamento fincados no atual espírito capitalista digital, moderno e inovador, tomado como um caminho natural para o futuro do jogo, mas que ainda demanda controles baseados na violência e na força. Pois, apesar de muitos dos que estão entrando na atual gestão do jogo terem aprendido com seus familiares da geração anterior e sido talhados para se tornarem os novos donos da contravenção, eles se deparam com limites claros. Por um lado, implementam modelos de gestão com formas e sentidos jamais imaginados pelos antigos bicheiros. Por outro, o fato de terem sido criados por eles fez com que não precisassem aprender com a experiência em um modelo de organização baseado em tentativa e erro, como argumentou o carnavalesco Milton Cunha:
– A diferença é que toda a inteligência empírica dos velhos, essa molecada não tem e não terá. Por quê? Porque não estão jogados aos leões como aqueles senhores estavam. Então é uma juventude de colégios bilíngues, trilíngues, carerésimos, que convivem com pessoas de alto padrão e tal. Então é uma outra realidade.
Sugestões de leitura
CAMPOS, Pedro Henrique; BEZERRA, Luiz Anselmo. “Contravenção, negócios e ditadura: A expansão econômica do jogo do bicho durante o regime empresarial-militar brasileiro”. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, vol. 16, n. 1, pp. 536-556, 2024.
LABRONICI, Rômulo Bulgarelli. Para todos ‘vale o escrito’: Uma etnografia do jogo do bicho. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
OTÁVIO, Chico; JUPIARA, Aloy. Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2015.
SIMAS, Luiz Antônio. Maldito invento dum baronete: Uma breve história do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Mórula, 2024.
SOARES, Simone Simões Ferreira. Jogo do bicho: A saga de um fato social brasileiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
Notas
1 O jogo do bicho já foi representado diversas vezes em telas e palcos, como, por exemplo, nos filmes Amei um bicheiro (1952), O bicho não deu (1958) e Rei do Rio (1985), na peça de teatro Boca de ouro (1959), escrita por Nelson Rodrigues, e na série Filhos do Carnaval (2006–2009), produzida pela HBO.
2 Salvo quando indicado, todas as falas em destaque são trechos do documentário Vale o escrito: A guerra do jogo do bicho (2023).
Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães; Castor de Andrade; Valdemir Garcia, o Miro; e José Caruzzo Escafura, o Piruinha
RÔMULO BULGARELLI LABRONICI (romulolabronici@gmail.com) é pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil) e do Instituto de Investigaciones Gino Germani (IIGG) da Universidade de Buenos Aires (UBA, Argentina). Tem doutorado pelo PPGA/UFF, com estágio doutoral no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da Universidade Nova de Lisboa (UNL, Portugal), mestrado pelo PPGA/UFF e graduação em ciências sociais pela UFF. É pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Conflito, Cidadania e Segurança Pública (Laesp) e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), ambos da UFF.
Publicado em: 12/08/2024
DILEMAS: REFLEXÕES é uma seção especial (blog) de DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL (ISSN Eletrônico: 2178-2792; ISSN Impresso: 1983-5922) e é publicada pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, integrante do INCT/CNPq INViPS. DILEMAS: REFLEXÕES não se responsabiliza por informações, opiniões e outros elementos dos textos aqui publicados. Estes são de inteira responsabilidade de seus autores