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Âncora 1
Nota 1
Âncora 2

Intervenção

Letalidade policial e regulamentação do
uso da força no Brasil

André Zanetic

USP

Reprodução

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A publicação, em 23 de dezembro, do decreto nº 12.341/2024, que regulamenta, em âmbito nacional, o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública, gerou um amplo debate, pautado por posicionamentos bastante diversos. Se, de um lado, muitos políticos, organizações e segmentos variados de matiz progressista prontamente se manifestaram favoravelmente à normativa, de outro, grupos de direita e extrema-direita se manifestaram, como esperado, de forma francamente contrária. Os governadores Romeu Zema (Novo-MG), Ratinho Jr. (PSD-PR), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Cláudio Castro (PL-RJ) alegaram, em nota conjunta, que o decreto “beneficia o crime organizado” e bloqueia a autonomia dos estados. 


Outros atores públicos e instituições, mesmo favoráveis ao texto, ponderaram que ele não traz novidades para o controle do uso da força estatal diante das normativas já disponíveis, além de não oferecer formas efetivas para garantir o cumprimento das normas – o que, na prática, representaria uma maior fragilidade da política de controle e redução do uso exacerbado e ilegal da força por parte dos agentes de segurança pública.


É preciso dizer que o decreto efetivamente apresenta diretrizes para a regulamentação do uso da força no nível nacional, mantendo e ampliando os princípios gerais preconizados por normativas anteriores. Embora não estabeleça novas regras, centraliza e atualiza em um único documento aspectos presentes em tratados internacionais sobre o tema e que já constavam em normativas nacionais, como a portaria interministerial nº 4.226/2010 sobre o uso da força e as leis nº 10.826/2003 e nº 13.060/2014, que disciplinam o uso das armas de menor potencial ofensivo por agentes de segurança no território nacional. No que diz respeito aos documentos internacionais refletidos nessas normativas, entre os principais estão o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1979, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1991) e os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1999) – esses últimos também da ONU.


O texto do decreto aponta ainda os contextos e limites em que o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo podem ocorrer, como, por exemplo, a observância de que “um recurso de força somente poderá ser empregado quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos” e de que “o nível da força utilizado deve ser compatível com a gravidade da ameaça apresentada pela conduta das pessoas envolvidas e os objetivos legítimos da ação do profissional de segurança pública”. Além disso, estabelece princípios para o uso diferenciado – ou seja, progressivo e proporcional – da força e salienta que os profissionais de segurança pública “deverão priorizar a comunicação, a negociação e o emprego de técnicas que impeçam uma escalada da violência” e que “o emprego de arma de fogo será medida de último recurso”. Destaca textualmente, ainda, a ilegitimidade do uso de arma de fogo em situações em que a pessoa em fuga “esteja desarmada ou (...) não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros”, bem como em situações em que um veículo “desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros”.


O documento também aponta para a construção e efetivação de formas de monitoramento e controle do uso da força, por meio da constituição de um Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força (CNMUDF), que idealmente deve ser espelhado pelos estados e órgãos de segurança pública. O Comitê teria o objetivo de, a partir da coleta e análise de informações, diagnosticar e avaliar o uso da força pelos profissionais de segurança, fiscalizando os excessos e apontando correções de rota na política. Além desses aspectos, são também traçadas diretrizes sobre a produção de materiais, a capacitação dos profissionais e a comunicação à população acerca do uso estatal da força – preconizando, por exemplo, orientações sobre como agir em caso de condutas inadequadas nas ações dos profissionais de segurança pública.


O decreto, portanto, é de grande importância, sendo um instrumento necessário para uma política nacional de controle do uso da força que reúne e atualiza as principais normativas sobre o tema, regularizando condutas e sinalizando para a criação de mecanismos de monitoramento e controle. Trata-se de diretrizes e medidas consagradas que, uma vez seguidas, visam apenas à proteção dos envolvidos em ações com agentes de segurança pública, incluindo os próprios agentes, para que possam realizar suas atividades de forma legal, legítima e eficaz. 


As respostas contrárias, já esperadas, têm claro significado político, em duas mãos. Uma delas se posiciona em consonância com a ideologia seletivista de controle pela violência de determinadas camadas populacionais, em especial negras e pobres, e prega que determinadas ações com elevados níveis de uso da força, muitas vezes com letalidade policial, são necessárias para manter a criminalidade sob controle. A outra mão, por sua vez, aposta no jogo político eleitoral, fazendo coro com amplas parcelas da população que se mostram favoráveis a posicionamentos retrógrados inspirados no avanço da truculência policial e a mudanças em medidas penais, como a pena de morte, a redução da maioridade penal e congêneres. Mesmo parcelas menos extremistas podem facilmente cair no engodo do endurecimento penal e da ação policial que impulsionam a ampliação da letalidade, embora muitos levantamentos já tenham demonstrado não haver nenhuma associação entre o aumento da letalidade policial e a redução da criminalidade (ver, por exemplo, MONTEIRO et al., 2022; FBSP, 2022).


Vale lembrar que regulamentar os tratados internacionais de que o Brasil é signatário é atribuição específica da União, ao contrário da alegação dos governadores Ronaldo Caiado (União-GO) e Cláudio Castro de que o decreto seria uma afronta aos poderes estaduais tal como expresso na Constituição. Trata-se de situação semelhante às recentes condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), referentes aos casos Castelinho (em São Paulo) e Favela Nova Brasília (no Rio de Janeiro). Em ambos, é a União que deve tratar das consequências, a fim de criar proteções para que tais ocorrências não se repitam.


Não se pode deixar de destacar que o decreto teve também um importante timing político, uma vez que surge como resposta ao recrudescimento nacional da violência policial. As últimas semanas de 2024 foram marcadas por acontecimentos atrozes em São Paulo. Em 5 de novembro, o menino Ryan Santos foi morto no Morro de São Bento, em Santos, por um tiro de espingarda calibre 12 que, segundo os laudos balísticos, partiu de um policial militar durante uma ação policial. O caso ajudou a sintetizar um contexto mórbido da letalidade policial envolvendo policiais militares paulistas. O pai de Ryan, Leonel Andrade Santos, havia sido morto pela Polícia Militar (PM) no início do ano, durante a “Operação Verão”, que havia feito 77 vítimas na Baixada Santista entre 18 de dezembro de 2023 e 1º de abril de 2024, sendo a ação policial mais letal desde o massacre do Carandiru, em 1992. A PM afirmou, na época, que Leonel teria trocado tiros com os policiais, embora ele fosse uma pessoa com deficiência e dependente de muletas para caminhar.


Outros casos paradigmáticos, todos ocorridos na Zona Sul de São Paulo, marcaram o fim de 2024. Em 20 de novembro, um estudante de medicina foi morto por policiais militares, indefeso e com tiros à queima-roupa; na madrugada de 2 de dezembro, um homem foi arremessado de uma ponte por um policial militar; no dia seguinte, outro, desarmado, foi barbaramente assassinado por um policial militar de folga, pelas costas, ao tentar furtar pacotes de sabão em um mercado.


Embora esses casos tenham se tornado símbolos da violência policial, por sua crueldade e por terem sido flagrados por câmeras civis, a escalada das mortes cometidas por policiais tem sido uma constante em todo o Brasil há mais de 10 anos. Entre 2013 e 2018, essas mortes aumentaram 179%, passando de 2.012 para 6.175; desde então, permanecem nesse nível bastante elevado, acima de 6 mil por ano. A letalidade policial ultrapassa fronteiras ideológicas, estando presente em estados com governos alinhados a diferentes segmentos político-partidários. O caso mais emblemático é o da Bahia, que já havia atingido números aterradores quando seu governador era Rui Costa (PT), atual ministro-chefe da Casa Civil do Governo Lula. Em 2022, último ano de seu mandato, a polícia baiana matou 1.467 pessoas, o que levou o estado a registrar o maior número de pessoas mortas por intervenções policiais do Brasil. Agora, no mandato do sucessor de Costa, Jerônimo Rodrigues, também do PT, a Bahia continua liderando essa estatística, tendo atingido em 2023 o maior número da série, com 1.699 vítimas.


Os desafios de controlar os usos e abusos da força são, portanto, imensos. Embora possamos considerar o decreto uma das medidas mais relevantes do atual Governo Lula na área, isso se deve principalmente às grandes lacunas e à paralisia que o governo federal continua demonstrando em relação à segurança pública. Não é objetivo deste texto, e nem há espaço aqui para fazer uma leitura das ações do governo federal na segurança pública como um todo. Contudo, não é exagero dizer que a tônica dos governos de matriz mais progressista em âmbito federal tem sido mexer pouco no status quo da segurança pública. As poucas mudanças relevantes vieram de experiências estaduais ou municipais. E os obstáculos não se resumem ao governo: salvo por um conjunto de instituições, pesquisadores(as) e profissionais do setor adeptos à defesa dos direitos humanos, o campo progressista ainda não foi tocado pelo martírio representado pela política de segurança pública no Brasil, e esse estado de coisas precisa mudar.


Do ponto de vista da viabilidade do controle do uso da força, deve-se destacar também que as garantias para o cumprimento das normas dependem da sinergia entre estados, Distrito Federal (DF) e União, uma vez que, no âmbito do pacto federativo, elas funcionam para os estados e DF apenas como recomendações, mas são obrigatórias para as organizações federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal). Como em outras matérias, a Federação exercerá pressão por meio do condicionamento dos repasses de fundos específicos – nesse caso, do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).


É importante destacar, como um alento, que a lei nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), foi referenciada no decreto. De fato, é da construção de um sistema nacional e único de segurança pública que deve emanar a própria legitimidade de uma normatização nacional do uso da força pelos agentes de segurança pública. A construção efetiva do Susp é fundamental e está em atraso. Concebido durante o primeiro governo Lula, entre a elaboração do projeto de governo durante a campanha e o início do mandato, e em parte espelhado no Sistema Único de Saúde (SUS), o Susp aglutinava as grandes expectativas de especialistas e gestores da área por reformas. Porém, naquele momento o projeto não foi levado adiante. Quase duas décadas depois, durante o governo Temer, em 2018, por meio do esforço do então ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, o Susp ganhou uma lei própria, que traçou seus contornos mas não estabeleceu uma regulamentação específica – e assim permanece até hoje. 


Atualmente, o governo federal trabalha para a construção de uma proposta de emenda constitucional (PEC), a “PEC da Segurança Pública”, que tem como uma de suas balizas centrais a constitucionalização do Susp. Contudo, na primeira versão apresentada à sociedade nada de efetivo se diz sobre a articulação e delimitação de ações e poderes entre os diferentes organismos que compõem a segurança pública em seus diferentes níveis. Ainda que seja importante dar caráter constitucional ao Susp, isso pouco ou nada significa se não for acompanhado de efetiva regulamentação. A regulamentação do uso da força, assim como tantas outras dimensões fundamentais da segurança pública, deveria, idealmente, ser solidificada em um sistema capaz de conectar e dar sentido orgânico e interligado a seus atores, que é o que se espera do Susp.


Acredito que, embora não seja uma resposta definitiva para o problema, o esforço de regulamentação, monitoramento e controle do uso da força pode ajudar as forças de segurança a alcançarem resultados mais relevantes em termos de redução das práticas abusivas, que precisam urgentemente ser freadas. É inadmissível que o Brasil tenha atingido números tão alarmantes de violência cometida contra os cidadãos pelo próprio Estado, minando a credibilidade e a confiança nessas forças, que, como resultado, acabam se tornando mais vulneráveis a se tornarem vítimas elas próprias.


Espero que esse passo ajude a iluminar os gestores e gestoras do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para que sigam com outras medidas substantivas e, junto às instituições e atores relevantes para a política de justiça e segurança pública, comecem a construir os alicerces para essa área de gestão tão necessária para a população brasileira, e que acumula tantos e tão grandes problemas.

Sugestões de leitura

 

FBSP. “Letalidade policial cai, mas mortalidade de negros se acentua em 2021”. In: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2022, pp. 78-90.

MONTEIRO, Joana; FAGUNDES, Eduardo; GUERRA, Julia. “Letalidade policial e criminalidade violenta”. Revista de Administração Pública (RAP), vol. 54, n. 6, pp. 1772-1783, 2022.

Outras reflexões

ANDRÉ ZANETIC (andrezanetic@gmail.com) é doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil) e graduado em ciências sociais pela USP. É associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

Publicado em: 21/01/2025

DILEMAS: REFLEXÕES é uma seção especial (blog) de DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL (ISSN Eletrônico: 2178-2792; ISSN Impresso: 1983-5922) e é publicada pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, integrante do INCT/CNPq INViPS. DILEMAS: REFLEXÕES não se responsabiliza por informações, opiniões e outros elementos dos textos aqui publicados. Estes são de inteira responsabilidade de seus autores

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