Intervenção
Tribunal do tráfico: Violência de gênero como ferramenta de poder
nas favelas
Júlia Quirino
UFRJ
Reprodução

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A recente divulgação de vídeos mostrando mulheres sendo submetidas a um ato de violência degradante, com seus cabelos raspados à força na comunidade da Serrinha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, suscitou um debate necessário sobre as dinâmicas de poder que perpetuam a opressão de gênero nas favelas.
Práticas semelhantes ocorreram em outros lugares e épocas, como na França após a Segunda Guerra Mundial, quando mulheres que mantiveram relações com soldados alemães foram publicamente humilhadas com o mesmo tipo de punição (VIRGILI, 2000). Essas práticas refletem a intersecção entre o controle social exercido por grupos armados ilegais (GAIs) e o machismo estrutural que domina o cenário de violência urbana. Além disso, expõem dinâmicas de poder que normatizam a opressão contra mulheres nos territórios de favelas.
O governo criminal e a violência de gênero
As práticas de governo criminal são estruturadas para manter o controle territorial e disciplinar corpos e condutas. A noção de governança criminosa, conforme discutido em minha dissertação de mestrado, Panóptico criminal (2024), baseia-se em Michel Foucault e suas reflexões sobre biopolítica, que descrevem como o poder regula a vida e o comportamento dos indivíduos, moldando suas escolhas e condutas.
Nos territórios sob controle do tráfico de drogas, essa governança assume uma forma peculiar, que combina elementos de controle soberano e disciplinar. Ela utiliza táticas destinadas a manter a ordem interna, frequentemente baseadas em normas patriarcais que perpetuam a marginalização das mulheres.
O caso aqui discutido remete à prática conhecida como “tribunal do tráfico”, em que líderes de facções julgam e punem aqueles que transgridem suas regras. As mulheres, em particular, são alvos frequentes de punições que exploram sua vulnerabilidade física e social. Essa dinâmica reflete um patriarcado que limita as escolhas femininas e reforça sua subjugação. O ato de raspar o cabelo simboliza não apenas a submissão, mas também a tentativa de desumanizar publicamente as mulheres, como “arma de opressão”, reforçando a masculinidade hegemônica que domina esses espaços.
O ato de raspar a cabeça de uma mulher como punição por suposta traição ou fofoca é uma manifestação extrema de machismo e misoginia, profundamente enraizados na sociedade. Esse tipo de violência de gênero reflete não apenas as dinâmicas internas dos GAIs, mas também sintomas de problemas estruturais maiores. Práticas como essas expõem como as mulheres são frequentemente tratadas como “propriedades” de homens, sujeitas a normas impostas que limitam sua autonomia e liberdade. Nesse contexto, o GAI regula não apenas as atividades econômicas dos territórios e o fluxo de bens, mas também as escolhas individuais dos moradores, moldando todo o seu cotidiano.
Mulheres no tráfico: as ‘faixas rosas’
Historicamente, mulheres em comunidades controladas por GAIs foram relegadas a papéis passivos ou de apoio. Essa dinâmica reflete não apenas a opressão de gênero, mas também as hierarquias impostas por esses grupos, que utilizam práticas disciplinadoras para legitimar sua autoridade nas comunidades.
Entretanto, nos últimos anos, houve um aumento da participação feminina em cargos de liderança – como gerentes, “donas da boca” ou guarda-costas –, embora de forma limitada, quando comparada à presença masculina (Zaluar, 1993, p. 135). Apesar de a participação feminina na liderança do tráfico estar aumentando, o envolvimento das mulheres continua sendo atravessado por questões de gênero e desigualdade. Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) referentes a 2022 revelam que 54,85% das mulheres encarceradas no Brasil foram presas por envolvimento com drogas, em contraste com 27,65% dos homens. Esses números destacam o impacto desproporcional da criminalização sobre mulheres, muitas vezes envolvidas em atividades de menor expressão nas organizações criminosas.
O termo faixas rosas designa mulheres envolvidas diretamente no tráfico, especialmente aquelas que portam fuzis. A expressão alude à bandoleira utilizada para carregar armas. Por outro lado, as calicas representam um grupo diferente: mulheres que não participam diretamente do tráfico, mas se vinculam à cultura local, frequentando bailes funk e mantendo relações com membros do GAI.
Rayane Nazareth Cardoso da Silveira, conhecida como “Hello Kitty”, é um exemplo emblemático de liderança feminina no tráfico. Reconhecida por ser “querida”, “vaidosa”, mas também “corajosa” e “violenta”, ela desafiava estereótipos que associam mulheres no crime à masculinização. As faixas rosas frequentemente mantêm uma aparência considerada “feminina”, personalizando armas com cores vivas e adornos brilhantes, ao mesmo tempo que adotam um papel ativo em um ambiente dominado por homens e conflitos armados.
Outro caso marcante é o de Gabrielly Pantoja Machado, conhecida como “Faixa Rosa”. Morta em 2023 em uma operação policial, ela atuava como guarda-costas de Leonardo Costa Araújo, o “Pará”, ocupando uma posição incomum para mulheres em um cenário tão arriscado. Fotos mostram Gabrielly com fuzil, colete e cordões de ouro, reafirmando sua influência no Comando Vermelho (CV) e rompendo estereótipos associados a papéis femininos passivos.
Esses casos destacam a complexa dinâmica de gênero nos GAIs. Embora desafiem o papel tradicionalmente submisso das mulheres nesses contextos, essas figuras também evidenciam como a desigualdade de gênero persiste mesmo quando mulheres ocupam espaços de liderança. Além disso, a visibilidade midiática dessas mulheres levanta questões sobre como elas são representadas, perpetuando ou desafiando narrativas que associam gênero, poder e criminalidade.
A responsabilidade do Estado e da sociedade
Embora práticas como a raspagem dos cabelos sejam executadas por GAIs, não estão desvinculadas das falhas do Estado. A ausência de políticas públicas efetivas para garantir a segurança e os direitos das mulheres cria um vácuo que é preenchido por grupos, como o CV. Além disso, a estigmatização das mulheres dessas comunidades como “cúmplices” ou “propriedades” dos traficantes reforça narrativas de culpabilização que dificultam a mobilização social em defesa de seus direitos. A sociedade precisa romper com essa visão reducionista e compreender que as mulheres são frequentemente vítimas de múltiplas formas de violência sistêmica.
O caminho para a mudança
A superação desse ciclo de violência exige um esforço coletivo que vai além da punição dos responsáveis. É necessário implementar políticas que promovam a educação de gênero, a autonomia econômica e a inclusão social das mulheres em territórios vulneráveis. Somente ao enfrentar as raízes estruturais dessa violência, incluindo o machismo e a negligência estatal, será possível construir um cenário em que práticas como as aqui descritas não encontrem mais espaço para existir.
O caso das mulheres de cabelos raspados é um alerta para a urgência de repensarmos as dinâmicas de poder que perpetuam a desigualdade de gênero. Que esse episódio trágico sirva como catalisador para um debate mais profundo sobre os direitos das mulheres em todas as esferas da sociedade.
Sugestões de leitura
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1995.
QUIRINO, Júlia. Panóptico criminal: A governança criminal do Comando Vermelho no Rio de Janeiro, 2024.
VIRGILI, Fabrice. La France “virile”: Des femmes tondues à La Libération. Paris: Payot, 2000.
ZALUAR, Alba. “Mulher de bandido: crônica de uma cidade menos musical”. Estudos Feministas, vol. 1, n. 1, pp. 135-142, 1993.
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JÚLIA QUIRINO (juliaquirino@ufrj.br) é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos (PPGEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e graduada em defesa e gestão estratégica internacional pela UFRJ. É pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ e integra a rede regional da sociedade civil para a implementação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional nas Américas.
Publicado em: 26/05/2025
DILEMAS: REFLEXÕES é uma seção especial (blog) de DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL (ISSN Eletrônico: 2178-2792; ISSN Impresso: 1983-5922) e é publicada pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, integrante do INCT/CNPq INViPS. DILEMAS: REFLEXÕES não se responsabiliza por informações, opiniões e outros elementos dos textos aqui publicados. Estes são de inteira responsabilidade de seus autores