Intervenção
Peso da tradição
x peso da droga
Frederico Policarpo
UFF
Reprodução
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Passados alguns meses da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à maconha, cabe um olhar mais detido sobre o que se passou e, mais importante, sobre seus possíveis impactos na política de drogas no país.
Meu objetivo aqui é provocar algumas reflexões acerca dos desafios relacionados à decisão do STF para que, de fato e de direito, ela se efetive. Como a própria decisão destaca, a descriminalização do “usuário”, que agora se caracteriza pelo porte de até 40g de maconha e 6 plantas fêmeas, visa equacionar dois pontos: aprimorar os canais de atendimento à saúde e diminuir a estigmatização em torno do uso de drogas.
A mensagem do STF é que a política de drogas é, também, uma política de saúde, baseada no cuidado do “usuário”, e não só uma política de segurança pública, baseada no enfrentamento e na repressão violenta ao “traficante”.
Do ponto de vista discursivo e normativo, essa é, sem dúvida alguma, uma decisão importante, como destacam Azevedo e Vasconcellos (17/07/2024), para o Brasil se alinhar às políticas de drogas mais contemporâneas em relação ao uso da maconha. Na mesma direção, ter algum parâmetro objetivo é melhor do que não ter nenhum, como observam Campos e Semer (28/06/2024). O problema é a decisão valer – e, mais importante ainda, a forma como ela será efetivada na prática.
O desafio é o seguinte: se outras medidas não forem tomadas, essa importante decisão do STF corre o risco de ser digerida pela tradição inquisitorial e cartorial que atravessa as práticas de controle do sistema de justiça brasileiro, em particular nas políticas de drogas. A descrição dessa tradição e de suas implicações para o funcionamento da Justiça brasileira é um dos eixos centrais das pesquisas realizadas pelo Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A emergência dessa tradição, como pontua o antropólogo Roberto Kant de Lima em sua extensa bibliografia sobre o tema(1), se deve à desigualdade estrutural da sociedade escravocrata, que precisava manter segmentos sociais controlados e hierarquizados. Esse modelo de representação da sociedade e, principalmente, sua forma de controle social baseada em procedimentos de construção da verdade legal sigilosos e cartoriais, como no caso do “inquérito policial” (LIMA, 2019; MISSE, 2022), está sendo concretizado há séculos no Brasil, seja por meio das práticas cotidianas de controle social seja nas instituições responsáveis pela formação desses profissionais.
Para o que nos interessa aqui, essa tradição tem duas implicações: 1) a ênfase no testemunho em detrimento da prova pericial; e 2) a concentração no poder de interpretação da autoridade legal. A decisão do STF, me parece, não dá a devida importância a essas implicações para o processamento dos casos de drogas, como também destaca Ferreira (05/07/2024). Ao concentrar-se apenas nos critérios objetivos acerca do peso da droga, a decisão ignora o peso da tradição:
[P]resume-se como usuário de drogas aquele que é encontrado na posse de até 40 gramas de maconha ou de 6 plantas-fêmeas, sem prejuízo do afastamento dessa presunção por decisão fundamentada do Delegado de Polícia, fundada em elementos objetivos que sinalizem o intuito de mercancia (STF, 26/06/2024, pp. 4-5, grifos meus).
Como já ocorre com a Lei de Drogas vigente (lei nº 11.343/06), a decisão do STF deixa de lado o elemento fundamental: o poder da autoridade – em todas as etapas do processamento criminal – para definir a verdade legal. É a tal “presunção relativa” mencionada na decisão. Isto é, o critério objetivo dos 40g e das 6 plantas sempre poderá ser relativizado pelo policial militar que decide ou não pelo flagrante, pelo delegado que decide ou não pelo registro cartorial, pelo promotor que decide ou não pela denúncia e pelo juiz que decide ou não pela condenação. Todas essas autoridades podem exercer a “presunção relativa”.
No entanto, a decisão do STF não criou essa “presunção relativa”, que, como veremos, é parte fundamental da aplicação da Lei de Drogas vigente. A inovação de agora é o “critério objetivo”. Um bom exemplo é a súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que ilustra bem essa ênfase nos procedimentos inquisitoriais e cartoriais – ou na “hipervalorização judicial do depoimento policial”, como dizem Salo de Carvalho e Mariana Weigert (2024, p. 25).
Diz a súmula: “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Na prática, a Justiça carioca aciona amplamente essa súmula, condenando acusados de tráfico – em sua maioria jovens, pretos, pobres, réus primários, com baixa escolaridade, flagrados com pouca droga e desarmados – unicamente com base no testemunho policial responsável pelo flagrante (BOITEUX e WIECKO, 2009; HABER, 2018; IPEA, 2023a, 2023b).
A consequência óbvia é a seguinte: a ênfase no testemunho policial, como destacado na súmula nº 70, se traduz na desvalorização da perícia. Em outras palavras, o valor do peso do testemunho supera o valor do peso da droga. O critério objetivo se torna relativo. Daí a pouca importância dada à perícia, como mostra a pesquisa Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas (2023a), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Há vários elementos importantes nessa e em outras pesquisas do Ipea sobre o tema que merecem ser discutidos em detalhe porque mostram bem a dificuldade no uso dos critérios objetivos ao longo do processo criminal. O trecho a seguir resume a situação:
A partir dos dados coletados, pode-se dizer que há pouca preocupação dos atores do sistema de justiça em delimitar a informação da quantidade de droga de forma objetiva e padronizada. Mais da metade dos autos de apreensão, documento que deveria descrever com exatidão o objeto da apreensão, deixam de mencionar a quantidade das substâncias em gramas. Um terço das denúncias, peça da acusação que se presta a narrar o fato-crime em todas as suas circunstâncias, deixa de mencionar a quantidade em gramas. A sentença também se preocupa pouco em delimitar a quantidade de drogas atribuídas aos réus de forma exata, deixando de mencionar a massa em gramas em 36% dos casos de cannabis e em 45% dos casos de cocaína. Os documentos que contam com menor taxa de não informação da quantidade em gramas são os laudos periciais (preliminares e definitivos), embora a maioria não especifique os métodos de pesagem do material (IPEA, 2023a, pp. 63-64).
Por isso, se a decisão do STF não for acompanhada de ações de valorização da perícia(2) junto aos profissionais responsáveis pela administração de conflitos relacionados às drogas, seu alcance será limitado. A criação do “critério objetivo”, como recomendado pelo Ipea, pode ser uma boa ferramenta para combater a estigmatização, como pretende a decisão do STF. A questão agora é garantir que ele seja aplicado.
Antecedentes
Em 2006, com a promulgação da atual Lei de Drogas, tivemos essa mesma oportunidade de refletir sobre o processamento criminal. Naquela ocasião, a discussão em torno de um “critério objetivo” já aparecia, mas não foi acolhida. A grande mudança, então, foi o fim da previsão da pena de prisão para o “usuário”, que foi vista, de uma forma ou de outra, como positiva porque criava a expectativa de maior abertura para políticas de saúde e para a diminuição do uso da força policial violenta, exatamente os objetivos atuais do Supremo.
Porém, não foi isso que aconteceu na prática. Na verdade, a promulgação da lei teve o efeito contrário. Com a “despenalização” do usuário, o encarceramento disparou, alimentado por condenações de “traficantes” – e, para piorar ainda mais, com um número cada vez maior de mulheres encarceradas.
Vários elementos nos ajudam a compreender essa situação(3). Um deles foi o aumento da pena para o “tráfico” (art. 33), em contrapartida à abolição da pena de prisão para o “uso” (art. 28). Depois dessa mudança, observamos um fenômeno curioso no processamento criminal dos casos relacionadas à Lei de Drogas. O crime tipificado como “tráfico” disparou, enquanto o de “usuário” simplesmente sumiu. Em resumo, é como se, depois da promulgação da lei, os usuários deixassem de existir e os traficantes se multiplicassem no país(4). Essa explicação pode parecer estranha, mas não causa constrangimento no sistema de justiça criminal, que continuou processando os casos de tráfico a todo vapor.
Mas há outra explicação, baseada em pesquisas empíricas (GRILLO, POLICARPO e VERÍSSIMO, 2011), que indica outra hipótese, em que a “presunção relativa” é o ponto chave. Como o “uso de drogas”, mesmo com o fim da pena de prisão, continuou sendo crime e a pena de “tráfico” aumentou, o poder de negociação do flagrante, legalmente justificado no dispositivo da “presunção relativa”, inflacionou. Em termos sociológicos, podemos dizer que houve um incremento no comércio das “mercadorias políticas” (MISSE, 2010): ficou mais caro não ser traficante. Com isso, a rede de captura pelo sistema criminal se expandiu em vez de se retrair como pretendido pela atual Lei de Drogas.
Outro relatório de pesquisa do Ipea (2023b), que apresenta os casos de drogas nos Tribunais de Justiça estaduais – representantes de mais de 99% dos casos –, reforça essa observação:
A narrativa processual inicial, dirigida essencialmente pela PM, determina o tom do processamento quanto à prova, quase sempre encontrando o desfecho na resolução de mérito da causa. Em outras palavras, isso quer dizer que o policial militar, ao proceder à prisão em flagrante no crime de drogas, ao contrário do que tende a ocorrer em crimes de maior complexidade (nos quais os filtros são mais atuantes na formação de funis), está, também, determinando seu julgamento. Isso leva à hipótese, a ser analisada em maior profundidade em pesquisas de caráter qualitativo, de que outras autoridades que poderiam filtrar essa tomada de decisões policiais no começo tendem fortemente a corroborá-las, no indiciamento pelo delegado, no oferecimento e no recebimento de denúncia pelo promotor e juiz, respectivamente (IPEA, 2023b, p. 99).
Essa conclusão, bem como o exemplo da súmula nº 70 do TJRJ, deixa claro que a aplicação de critérios objetivos tem um peso relativo na Lei de Drogas por conta das características inquisitoriais e cartoriais presentes no sistema de justiça brasileiro. A “presunção relativa” torna o “critério objetivo relativo”(5).
Conclusão
O STF deu um passo muito importante no enfrentamento dos problemas causados pela política de drogas no Brasil. Ao julgar o recurso, a Corte reconhece os prejuízos causados por uma política exclusivamente pautada no combate ao tráfico, nos efeitos da estigmatização e no afastamento do atendimento de saúde aos usuários. Reforço, como disse no início deste texto, que considero esse esforço louvável e celebrável. Meu objetivo aqui foi provocar uma reflexão, a partir de dados empíricos, acerca dos desafios que a decisão do STF tem pela frente.
Em nosso sistema de justiça, o critério objetivo é visto como limitador do “poder discricionário” do policial que flagra, da “presunção relativa” do delegado que registra, da “autonomia” do promotor na ação penal e, finalmente, do “livre convencimento” do juiz para sentenciar.
Me parece que este é o grande desafio: como aplicar o critério objetivo nesse sistema de justiça? Alterar o texto normativo é tão importante quanto observar sua aplicação, isto é, dar atenção às práticas cotidianas de todos os profissionais que atuam nas etapas da produção da verdade legal.
Por isso, agora é fundamental que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Congresso Nacional e organizações sociais se somem aos esforços do STF e promovam o alinhamento do novo entendimento junto às instituições envolvidas, em especial as polícias Militar e Civil, o Ministério Público e a Magistratura. Se isso não for feito, corremos o risco de ver as mudanças propostas não atingirem o objetivo previsto na decisão do STF – ou, pior, que tenham um efeito reverso, como a Lei de Drogas de 2006 nos ensinou.
Sugestões de leitura
AZEVEDO, Rodrigo G.; VASCONCELLOS, Fernanda B. “A decisão do STF sobre a descriminalização da maconha: avanços e limitações: Somente com medidas integradas e abrangentes, que enfrentem o proibicionismo e a criminalização, será possível construir uma política de drogas mais justa, eficiente e humana”. Fonte Segura, n. 240, 17 jul. 2024.
AZEVEDO, Rodrigo G.; HYPOLITO, Laura. “Política Penal de Drogas en Brasil: Un Estudio Contemporáneo sobre la Legislación y sus Impactos”. Revista Uruguaya de Ciencias Sociales, vol. 36, n. 53. pp. 63-88, 2023.
BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela. Tráfico e Constituição. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.
CAMPOS, Marcelo; SEMER, Marcelo. “Drogas, STF, descriminalização: Evidentemente há um avanço do ponto de vista da saúde pública em relação à descriminalização do porte de maconha. No entanto, é preciso considerar também os limites das mudanças em curso”. Le Monde Diplomatique Brasil, Online, 28 jun. 2024.
CARVALHO, Salo; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. Sobre a relevância do depoimento policial no processo penal: a inadequação constitucional da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública dos Rio de Janeiro, Parecer, fev. 2024.
FERREIRA, Luisa Moraes Abreu. “Decisão do STF sobre porte de maconha para consumo: impactos e desafios para a política de drogas no Brasil”. Portal FGV, Políticas Públicas, 5 jul. 2024.
GRILLO, Carolina.; POLICARPO, Frederico; VERÍSSIMO, Marcos. “A ‘dura’ e o ‘desenrolo’: efeitos práticos da nova lei de drogas no Rio de Janeiro”. Revista de Sociologia e Política, vol. 19, n. 40, pp. 135-148, 2011.
HABER, Carolina Dzimidas (coord). Pesquisa sobre as sentenças judiciais de tráfico de drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio de Janeiro: Relatório final. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ), 2018.
IPEA. Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: Natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum. Rio de Janeiro: Ipea, 2023a.
IPEA. Perfil do processado e produção de provas em ações criminais por tráfico de drogas: Relatório analítico nacional dos tribunais estaduais de justiça comum. Brasília, DF: Ipea, 2023b.
LIMA, Roberto Kant de. Ensaios de antropologia e de direito: Acesso à justiça e processos institucionais de administração de conflitos e produção da verdade jurídica em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
LIMA, Roberto Kant de. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: Seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
MACIEL, Natalia; SOARES, Milena. “O princípio da presunção de inocência e a adoção de critérios objetivos para distinção de uso e tráfico de drogas: Para que a adoção de critérios objetivos de quantidades para diferenciar as condutas de tráfico e uso seja efetiva, é essencial que venha acompanhada de medidas para garantir a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência”. Fonte Segura, n. 191, 12 jun. 2023.
MISSE, Michel. O inquérito policial no Brasil: Uma pesquisa empírica. 2.ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2022.
MISSE, Michel. “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, vol. 35, n. 2, pp. 89-107, 2010.
POLICARPO, Frederico. Os usuários de drogas na justiça: Uma etnografia do Programa Justiça Terapêutica da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
STF. Recurso extraordinário nº 635.659. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal (STF), 16 jun. 2024.
Notas
1 Uma pequena mostra dessa produção pode ser conferida em Lima (2011).
2 O que também significa garantir a aplicação do princípio constitucional da presunção da inocência (MACIEL e SOARES, 12/07/2023).
3 Por exemplo, em Azevedo e Hypolito (2023).
4 Acompanhei de perto esse “sumiço” dos “usuários” no sistema de justiça durante o final de meu trabalho de campo para o mestrado (POLICARPO, 2020).
5 A propósito dessa discussão, está em fase de conclusão o projeto de pesquisa Produção, Circulação, Uso e Consumo do Laudo Pericial no Fluxo Criminal: Tecnologias, Impactos e Inovação da Perícia Técnico-Científica na Construção da Verdade Jurídica em Casos de Letalidade Violenta, coordenado por Roberto Kant de Lima.
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FREDERICO POLICARPO (fredericopolicarpo@id.uff.br) é professor do Departamento de Segurança Pública do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil). É doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFF e graduado em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Publicado em: 28/11/2024
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