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Intervenção

Os limites e alcances do aborto legal: Um olhar
a partir dos direitos das meninas e mulheres

Outras reflexões

Débora Allebrandt

UFAL

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Mídia Ninja

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12 de junho de 2024: o projeto de lei (PL) nº 1904/2024, que não diferencia aborto legal de aborto inseguro e equipara ambos a homicídio, teve sua tramitação em caráter de urgência aprovada pelo Parlamento brasileiro. Há nessa proposta legislativa a intenção de barrar o parco acesso ao aborto legal no país, hoje permitido apenas em casos de estupro, feto anencéfalo e risco de vida para a mãe. Como informa o Portal da Câmara dos Deputados, caso o projeto seja aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de 6 a 20 anos — a punição para casos de estupro, citada no art. 213 do Código Penal, é de, no máximo, dez anos de reclusão. Não à toa, o projeto passou a ser chamado de “PL do Estuprador”, já que penaliza mais fortemente a vítima do que o perpetrador do crime. A esse respeito, dados de 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revelam que a cada 8 minutos uma menina ou mulher é vítima de estupro no Brasil. E esse número assombroso pode ser ainda maior, pois a subnotificação é uma realidade persistente.

Voltemos um pouco no tempo: algumas semanas antes, em 23 de maio, o governo federal havia sido alvo de uma sabatina por parte do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Comitê Cedaw)(1), da ONU, sendo cobrado por respostas mais efetivas do Estado para garantir o acesso ao aborto legal no Brasil. Entidades da sociedade civil e peritas do Comitê Cedaw alertaram para uma “epidemia” de partos entre crianças impedidas de realizar abortos legais em serviços médicos habilitados. A ofensiva conservadora que se impôs na tramitação em caráter de urgência do PL 1904, no entanto, já vinha sendo articulada em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM), que havia emitido, em março, uma resolução proibindo a utilização de uma técnica clínica, a assistolia fetal, para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro. A resolução foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), impulsionando a criação do PL 1904  e revelando mais uma vez a atuação discricionária de uma entidade de classe que deveria garantir o exercício da medicina conforme previsto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) — ligada, aliás, à ONU. Voltando um pouquinho mais no tempo, lembremos que o CFM defendeu o direito de médicos prescreverem medicamentos como a ivermectina, sem eficácia comprovada, para a prevenção e o tratamento de Covid-19. Como “toda ação tem uma reação”, após a tramitação em caráter de urgência ser aprovada, a reação da sociedade foi imediata, por meio de milhares de declarações de repúdio ao PL 1904 nas redes sociais e de manifestações organizadas por lideranças e associações feministas nas principais capitais do país. Após essa onda de manifestações, autores e apoiadores do projeto buscaram “atenuar” o caráter criminalizador da vítima e criminalizar com severidade os profissionais de saúde que realizam o aborto.

Em meio a toda essa celeuma, é importante salientar um ponto fundamental: as principais vítimas desse projeto de lei, caso seja aprovado, serão as meninas que sofreram violência sexual. Afinal, são principalmente elas que, após o trauma e suas consequentes dificuldades, chegam aos serviços de saúde para realizar o aborto garantido por lei após 22 semanas de gestação. Muitas dessas crianças, frequentemente vítimas de violência dentro de suas próprias casas, não dispõem de informações que lhes permitam reconhecer a gravidez, o que só ocorre quando as transformações corporais passam a ser visíveis — em muitos casos, após as 22 semanas. Como vergonhosamente demonstrado pelas estatísticas, falhamos em proteger as meninas nas múltiplas instâncias — família, comunidade, Estado. 

Como pesquisadoras vinculadas a três redes de pesquisa(2) dedicadas a investigar as relações políticas e sociais envolvendo família, parentesco, maternidades e infâncias, nossa proposta neste texto é analisar os impactos do PL 1904 especialmente para as meninas. Sabemos que, infelizmente, a violência sexual é um crime muito recorrente e que acaba, na maioria dos casos, gerando questionamentos a respeito da veracidade das circunstâncias, sobretudo quando se trata de crianças. O abuso sexual é, muitas vezes, um crime cometido por pessoas próximas, de confiança ou da família. Em casos de violência sexual contra mulheres adultas, a vítima é comumente desacreditada e questionada sobre sua conduta, as roupas que vestia quando foi violentada etc. Da mesma forma, quando esse crime vitimiza crianças e elas conseguem verbalizar a violência que sofreram, também são desacreditadas e, especialmente, suas mães são acusadas de negligência. 

Vamos contar uma história do trabalho de campo realizado pela autora Débora em Maceió, Alagoas, em 2015: 

– Quando iniciei minhas pesquisas em Alagoas, por interesse de uma aluna acabei realizando um campo exploratório na delegacia de proteção à criança. No meu primeiro encontro com a então delegada, ela me disse que o que mais precisava ser estudado ali era a violência sexual. Esse era o crime mais comum contra as crianças. Na época eu ainda não era mãe e já senti um desconforto inicial em trabalhar esse tema. Na continuidade de nosso trabalho de campo, enquanto acompanhava o registro de denúncias e boletins de ocorrência por uma das escrivãs, ela me contou um caso que acabara de registrar: uma menina de 12 anos, grávida, vítima de violência sexual cometida pelo pai. A escrivã me dizia com naturalidade o quanto esses casos eram comuns e como ela se sentia revoltada pela possibilidade do aborto legal nesses casos. Naquele dia, me confidenciou que disse à família [dessa menina] que a “única pessoa inocente ali era o bebê” e que não achava justo que eles procedessem com o aborto.

 

Como podemos olhar para crianças vítimas de estupro e grávidas e não acreditar que elas são inocentes? Como podemos hesitar em voltar todas as nossas ações de proteção para essas crianças? Essa história nos ajuda a perceber como, mesmo nas situações de denúncia, o fato de o aborto ser criminalizado e moralmente condenado por muitos dogmas e crenças implica atitudes antiéticas por parte dos profissionais atuantes nas mais diversas instâncias e serviços que deveriam proteger as vítimas. Se na delegacia a menina não é vista como vítima, nos serviços de saúde tampouco será.

 

De acordo com o DataSUS, apenas em 2023, 12 mil meninas com idades entre 8 e 14 anos foram mães. Estamos falando de 12 mil gestações que poderiam ter sido interrompidas. De 12 mil meninas que terão suas vidas marcadas por uma gestação e pela maternidade impostas violentamente. De 12 mil meninas que deixarão de frequentar a escola. De 12 mil meninas mães. 

 

Essas meninas, na maioria dos casos, foram recebidas nos serviços de saúde sem serem questionadas sobre as circunstâncias da concepção. Os homens não foram denunciados ao Conselho Tutelar ou criminalmente, muitas vezes não serão sequer acionados a prestar alimentos a seus filhos. As meninas não foram orientadas sobre seu direito ao aborto legal, tampouco encaminhadas aos poucos serviços de atendimento disponíveis no país. Foram, em vez disso, encaminhadas ao pré-natal. Elas e suas mães foram julgadas moralmente pela “hipersexualização” e pela falta de cuidado. Mas nunca é demais lembrar: pelo Código Penal vigente, toda “prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos” é crime e se configura como estupro de vulnerável.

 

Uma médica obstetra entrevistada no âmbito da pesquisa Desafios e Estratégias da Educação Permanente na Saúde Materna e Infantil em Alagoas apresentou como um caso marcante de sua atuação profissional o acompanhamento do parto de uma menina de 11 anos. Ela nos contou que atender aquela menina, “miudinha”, “bem criança mesmo”, a abalou e demonstrou, na prática, todos os riscos da gravidez infantil, desafiando também a formação teórica que havia recebido. Como uma menina de 11 anos pode ser mãe? Ela ainda não tinha um corpo suficientemente desenvolvido para ser mãe. Correu risco de vida durante a gestação e, sobretudo, durante o parto. Essa menina, portanto, deveria ter tido acesso ao aborto. 

 

Quando a sociedade, de forma ampla, clama e grita “Criança não é mãe!”, precisamos atentar para as desigualdades que dificultam a garantia de direitos. Segundo uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os serviços de aborto legal no país estão concentrados, em sua maioria, nas capitais e cobrem apenas 3,6% dos municípios brasileiros. Agravando ainda mais a situação da oferta ínfima de serviços, quando mulheres e meninas chegam a eles, é comum que sofram descrédito e violência institucional, sendo impedidas do acesso a esse direito. Em 2022, tivemos o caso, ocorrido em Santa Catarina e amplamente divulgado, de uma criança de 11 anos, vítima de estupro, que soube da gravidez na 22ª semana de gestação e foi impedida de realizar o aborto, inicialmente pelo Hospital Universitário de Florianópolis e depois por uma decisão da juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina. No ano seguinte, no mesmo estado, uma adolescente de 14 anos também foi impedida de realizar o aborto; o próprio estuprador se sentiu no direito de solicitar judicialmente a não realização do procedimento, tendo como aliada a organização antiaborto Rede Nacional em Defesa da Vida e da Família. Os dados estatísticos mostram que esses casos não são isolados e que as principais vítimas da PL 1904 seguirão sendo mulheres e crianças vítimas de estupros, enquanto estupradores e organizações antiaborto terão a seu favor o poder da caneta imposta em lei para continuar reproduzindo violências sobre essa parcela da população.

É preciso dizer que, embora não haja soluções simples para quebrar o ciclo da violência de gênero, investir no direito à educação de qualidade é uma via. A educação afetivo-sexual nas escolas, com o ensino de estratégias de prevenção de abuso sexual, deveria ser a prioridade, e não um projeto de lei que cerceia direitos ainda não plenamente conquistados, uma vez que o aborto legal está longe de ser garantido no Brasil. A rede de proteção à infância requer a promoção urgente dos direitos das crianças e adolescentes de forma mais efetiva, de modo que se possa empoderá-las e identificar precocemente casos de violência. 

O movimento antiaborto pró-vida se opõe às discussões de gênero e sexualidade nas escolas, argumentando que elas comprometem uma “infância pura, inocente e protegida”. No entanto, ao silenciar esses debates, acaba por calar as vozes das crianças, perpetuando uma forma de violência silenciosa contra seus corpos. A negação de um diálogo aberto e educativo nas escolas reforça a vulnerabilidade de meninos e meninas, privando-os da oportunidade de compreender e proteger seus próprios corpos e de se expressar contra possíveis abusos, inclusive aqueles que ocorrem no âmbito familiar, como evidenciado pelos dados do Atlas da Violência, do FBSP e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Discutir gênero e sexualidade nas escolas promove um compromisso ético com o engajamento na compreensão de como as relações de gênero são institucionalizadas e se atualizam, se corporificam e ressoam nas problemáticas aqui pautadas. Possibilita ainda o reconhecimento do que se faz presente em muitos processos educativos que naturalizam as assimetrias, as desigualdades e toda sorte de violência.

Compreendemos, portanto, que a violência sexual contra crianças não é um problema isolado de uma ou outra criança e de suas mães. Trata-se, em vez disso, de uma questão política, social e de saúde pública que precisa ser enfrentada coletivamente. É fundamental, além de simplesmente se fazer um debate público qualificado sobre o assunto, criar espaços seguros de diálogo e escuta atenta das crianças e adolescentes de diferentes realidades sociais, bem como desenvolver estratégias para o reconhecimento da importância de suas vozes e de seus direitos.


O movimento antiaborto pró-vida argumenta ainda a favor da possibilidade de adoção dos bebês frutos da violência. Com isso, viola os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e expõe essas vítimas de estupro a uma situação explícita de mais violência, crueldade e opressão que pode custar suas vidas, devido aos riscos envolvidos na gestação num corpo ainda em desenvolvimento. Isso acentua ainda mais as desigualdades de gênero e favorece uma cadeia de exposição e vulnerabilização. 

Como professoras e pesquisadoras feministas, lutamos pela descriminalização do aborto, cujo mote é “Nem presa, nem morta”. A importância de retirarmos essa pauta de uma agenda que criminaliza o aborto reside em reenquadrá-la como questão de saúde pública, relacionando-a devidamente ao acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Nem meninas e mulheres nem os profissionais de saúde devem ser criminalizados pelo aborto. Impedir a interrupção de uma gravidez produzida por violência significa revitimizar essas crianças. A garantia do aborto legal para crianças vítimas de estupro é uma ação de proteção do Estado, já que a gravidez na infância é resultado da violação de direitos. Seguiremos lutando pelo direito à vida das meninas violentadas, pela garantia de seu direito de frequentar a escola, de brincar, de sorrir e de vivenciar a infância em sua plenitude. Criança não é mãe!
 

Notas

1 Cedaw é a sigla para o título original do Comitê, em inglês: Committee on the Elimination of Discrimination against Women.

2 São elas: Infâncias Protagonistas (disponível [on-line] em: https://www.infanciasprotagonistasunb.com.br; @infanciasprotagonistas); Rede Anthera (disponível [on-line] em: https://www.redeanthera.com/; @rede.anthera ) e Rede Rema (disponível [on-line] em: https://rema.uff.br/; @redematernidades). 

Luciana Hartmann

UnB

Rocío Bravo Shuña

Rede Infâncias Protagonistas (UnB)

Vanessa Paula Ponte

UnB

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DÉBORA ALLEBRANDT (debora.allebrandt@ics.ufal.br) é professora adjunta da Universidade Federal de Alagoas (Ufal, Maceió, Brasil), co-líder do Mandacaru: Núcleo de Pesquisas em Gênero, Saúde e Direitos Humanos e integrante da Rede REMA (Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas pelo Estado) e da Rede Anthera (Rede Internacional de Pesquisa sobre família e parentesco), além de membra da Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É doutora em Antropologia pela Université de Montréal (Udem, Canadá), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Porto Alegre, Brasil) e graduada em ciências sociais pela UFRGS. Realizou estágio de pós-doutorado junto ao PPGAS/UFRGS entre 2013 e 2015.

LUCIANA HARTMANN (luhartm@yahoo.com.br) é professora titular do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB, Brasil) e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGCEN) e do Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais (PPGPC) da Universidade Federal de Goiás (UFG, Goiânia, Brasil). É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFCS, Florianópolis, Brasil), com período sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris, França), mestre pelo mesmo programa e graduada em artes cênicas pela UFRGS. Fez pós-doutorado na Université Paris Ouest Nanterre (2014-2015) e na Universidade de Lisboa (2019-2020). É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e mãe de duas jovens mulheres.

ROCÍO BRAVO SHUÑA (rocio.bravoshuna@usp.br) é pesquisadora de pós-doutorado na Rede Infâncias Protagonistas: Migração, Arte e Educação, no Departamento da Artes Cênicas da Universidade de Brasília (Unb) e pesquisadora no Observatório de Saúde e Migrações da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, Brasil) e ativista da Rede MILBi+ e integrante da Rede Infâncias Protagonistas (sediada na UnB). É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPG-PSO) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, Recife, Brasil) e graduada em psicologia pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM, Peru).

VANESSA PAULA PONTE (nessaponte@gmail.com) é pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da UNB e Integrante da Rede Internacional de Pesquisa sobre família e parentesco (Rede Anthera) e do Núcleo de Estudos em Saúde Pública (Nesp), vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam) da UnB. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Ceará (UFC, Fortaleza, Brasil) e bacharel em ciências sociais pela UFC. Fez ainda pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Publicado em: 09/07/2024

DILEMAS: REFLEXÕES é uma seção especial (blog) de DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL (ISSN Eletrônico: 2178-2792; ISSN Impresso: 1983-5922) e é publicada pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, integrante do INCT/CNPq INViPS. DILEMAS: REFLEXÕES não se responsabiliza por informações, opiniões e outros elementos dos textos aqui publicados. Estes são de inteira responsabilidade de seus autores

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