Intervenção
Saúde pública e abolicionismo penal:
A amamentação escancarando o problema
Beatriz Oliveira Santos
USP
Letícia Maria Gil
Unicamp
Reprodução

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Em agosto de 2024, o Ministério da Saúde lançou a Campanha Nacional de Amamentação, com o slogan “Amamentação, apoie em todas as situações”. A iniciativa visava destacar a importância de oferecer suporte integral a quem amamenta, mesmo em situações desafiadoras. Para isso, a campanha se valeu de recursos gráficos, audiovisuais e texto para enfatizar o papel do apoio doméstico e nos cuidados com a criança – seja em áreas urbanas, rurais ou em abrigos provisórios –, além de orientar famílias a buscarem auxílio nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) para superar dificuldades relacionadas à amamentação.
A importância de se promover a campanha é indubitável, já que grande parte das dificuldades em se garantir uma amamentação adequada para toda a população tem a ver com a desinformação e a interferência da indústria de fórmulas infantis nas práticas de profissionais e famílias. No entanto, há outros fatores que também representam enormes desafios e que são ou completamente ignorados pela campanha ou incluídos por breves alusões. Referimo-nos, de modo mais abrangente, às desigualdades sociais que atravessam todo o território nacional e às diversas situações de precarização e vulnerabilidade que elas impõem. E, especificamente, ao fato de que a campanha não contemple nada a respeito da amamentação em situações de cárcere.
O encarceramento feminino cresceu exponencialmente nas últimas duas décadas – e continua crescendo. No Sistema Único de Saúde (SUS), já existe uma política específica para a atenção à saúde da população prisional. O que desejamos discutir neste ensaio é que a exclusão dessa pauta na campanha é sintomática e precisa ser reconhecida e debatida como tal. Agosto é o mês de referência para a discussão sobre a amamentação, tanto é que o termo “Agosto Dourado” é utilizado para simbolizar a luta pelo incentivo a essa prática. A cor dourada se relaciona ao padrão ouro de qualidade do leite humano na primeira hora pós-parto. Reiteramos que ações como a campanha nacional são fundamentais para mobilizar políticas públicas e educar a população sobre práticas saudáveis. Lançada três meses após a catástrofe causada pelas chuvas no Rio Grande do Sul, a campanha traz imagens de pessoas amamentando em abrigos provisórios, abordando assim um tema que tem ganhado espaço não só no campo da saúde: a iminência de situações críticas decorrentes das mudanças climáticas. Essa articulação contextualiza a importância do aleitamento humano diante de problemáticas atuais no debate público e reforça a ideia, promovida na campanha, de que a amamentação deve ser apoiada por toda a sociedade “em todas as situações”.
Contudo, a campanha também expôs as contradições do olhar da saúde pública – e, portanto, do Estado – sobre a abrangência da expressão “todas as situações” nas quais a amamentação exige apoio integral. Apesar de apresentar imagens que representam uma diversidade de contextos – como espaços urbanos e rurais, espaços públicos e territórios indígenas – e sujeitos – como pessoas com diversos marcadores étnico-raciais – envolvidos nessa prática, a campanha não oferece instrução suficiente e suporte para situações de vulnerabilidade específicas, como o cárcere.
E esse não é um caso isolado. Entre os materiais indicados para consulta, estava o Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos, sem dúvidas uma conquista em termos de abordagem para as políticas públicas voltadas para a amamentação, por oferecer orientações abrangentes sobre a alimentação infantil. Contudo, o Guia nem sempre aborda as necessidades específicas de populações marginalizadas e não menciona nada sobre a amamentação na prisão.
De fato, o encarceramento feminino está entre os cenários mais desafiadores para a amamentação. No Brasil, relatos e uma bibliografia extensa apontam que as prisões configuram ambientes hostis à saúde física e mental do binômio mãe-bebê. Não há evidências de que as unidades penitenciárias ou os aparelhos de saúde que atendem a população encarcerada proporcionem proteção ou apoio efetivo ao aleitamento humano exclusivo (AHE). Pelo contrário, como discute Beatriz Santos (2024), a assistência ao AHE nessas instituições é consistentemente condicionada pelas dinâmicas de vigilância e punição características do sistema prisional.
Um exemplo disso é que, embora as orientações gerais, inclusive da Campanha Nacional de Amamentação, recomendem que o leite humano seja a única fonte de alimentação até os seis meses de vida – por sua segurança e por contribuir para reduzir a mortalidade infantil – e continue após a introdução alimentar até pelo menos os dois anos, o contexto prisional raramente permite o cumprimento dessa prática. A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) não estabelecem um período mínimo para a permanência da criança com a mãe encarcerada, criando disparidades na regulamentação entre os estados. Raramente esse período se estende para além dos seis meses do bebê.
É fundamental destacar que a prisão, por si só, constitui um espaço de múltiplas privações que restringem a autonomia dos encarcerados e favorecem o adoecimento. No caso das mulheres, essas dinâmicas são intensificadas pela experiência da maternidade no cárcere, em que as decisões sobre amamentação são frequentemente moldadas pelas circunstâncias adversas, e não por uma escolha consciente. Angelita Nogueira et al. (2020) observaram que, em contextos de desmame precoce e de separação dos filhos, há uma dicotomia de sentimentos vivida pelas mães aprisionadas: o desejo e o prazer em amamentar e transmitir amor são positivos; e a inclinação a não amamentar por medo do sofrimento é negativo. Essa dinâmica evidencia como o desmame nessas situações não é fruto de autonomia, mas de pressões impostas por um ambiente que exacerba vulnerabilidades físicas e emocionais, privando as mulheres do direito de exercer escolhas maternas em sua plenitude.
As maternidades no cárcere nos colocam diante de um problema que, em grande medida, as políticas de saúde pública parecem ter dificuldade de elaborar: as situações em que informar e educar, que é o que esse campo tem se preocupado em fazer, não é suficiente. Mesmo que a campanha nacional indique os benefícios da amamentação para o bebê, a mulher e o planeta, poucos são os indicativos de atuação concreta para garantir esse direito a mulheres mantidas sob a custódia do Estado. O campo da saúde precisa com urgência enfrentar o fato de que não é possível garantir uma prática de amamentação adequada na lógica prisional.
Ao apontar o silêncio da campanha sobre a amamentação em contextos de aprisionamento, não partimos do princípio de que o ambiente carcerário possa ser aprimorado a ponto de se tornar adequado para essa prática. Muito pelo contrário. O que desejamos evidenciar é que esse silêncio sobre o cárcere é sistemático nas elaborações do campo da saúde em termos de políticas públicas gerais. E isso não aponta, como sugerem alguns discursos, uma falha do sistema prisional em executar diretrizes de órgãos reguladores das práticas de assistência à saúde. Aponta, em vez disso, para uma dinâmica de Estado – incorporada por diversos setores da sociedade civil – há muito observada por movimentos de orientação abolicionista penal e denominada abandono organizado do Estado pela geógrafa estadunidense Ruth Gilmore.
Essa dinâmica implica uma série de práticas e omissões que garantem a marginalização estratégica de um grande contingente de pessoas, marcadas principalmente por processos de racialização e empobrecimento. Nela, o cárcere ocupa um papel importante de estruturação e opera como um grande epicentro de organização. Diante dessa perspectiva, o silêncio da Campanha Nacional de Amamentação a respeito das maternidades encarceradas é ao mesmo tempo gritante e previsível: gritante porque explicita as negações de existências que a lógica do sistema prisional exige para se sustentar; e previsível porque essa lógica só se sustenta se for imposta não só a todos os campos da administração pública – a saúde incluída –, mas também a diversas esferas da nossa organização social.
A omissão da campanha em trazer informações sobre a amamentação no cárcere é mais um sintoma do abandono organizado a que estão submetidas as pessoas-alvo das políticas carcerárias e sua lógica punitivista. Além disso, demonstra como o campo da saúde pública não está disposto a fazer uma leitura crítica e contextualizada do sistema prisional quando está colocado diante de questões referentes à garantia de direitos. Ou seja, uma leitura que compreenda o cárcere como o dispositivo de controle e violência racial e de gênero que é (e não de “segurança pública”), para então pensar políticas de saúde pública voltadas ao desencarceramento efetivo das populações afetadas.
É por isso que entendemos que, apesar de essencial para promover o aleitamento humano e sensibilizar a sociedade sobre a importância do apoio integral, a Campanha Nacional de Amamentação permanece incompleta ao negligenciar o encarceramento feminino.
Também precisamos frisar que já existe literatura suficiente sobre o tema para demonstrar os impactos do encarceramento na experiência da amamentação para as mulheres e bebês diretamente afetados. O descompasso entre a pesquisa, as políticas públicas e a realidade prisional é mais um alerta da necessidade de políticas de saúde que incorporem abordagens interseccionais, reconhecendo como fatores de gênero, raça, classe e etnia afetam o acesso e a qualidade do cuidado à saúde.
Ao expor as limitações da campanha, queremos contribuir para um debate sobre saúde pública e coletiva que extrapole as barreiras disciplinares que nos impedem de compreender coletivamente a necessidade de políticas mais inclusivas e sensíveis às diversas realidades da população brasileira e que entenda a realidade carcerária não como um espaço de exceção, mas como uma estrutura que organiza toda a nossa sociedade. E que, a partir disso, possa construir um caminho para o desencarceramento.
Sabemos que, apesar da ausência de menção na campanha, há leis e recomendações de dentro da máquina legal que podem dar algum respaldo para a garantia do direito à amamentação para mães e bebês que vivenciam esse processo na prisão. No entanto, assim como é sintomática a exclusão do cárcere da Campanha Nacional de Amamentação, o descaso com cumprimento dessas medidas legais também só reforça o que a prática de movimentos sociais que atuam em uma perspectiva abolicionista penal observa há muito tempo: a insuficiência do Estado em proteger e garantir os direitos da população alvo das políticas de encarceramento serve aos propósitos de organização social do cárcere.
Por isso, por mais importantes que essas medidas legais sejam para estancar o sofrimento de um caso ou outro, não basta exigir a garantia da lei para a proteção dessas mulheres e para o acesso desses bebês ao aleitamento humano dentro do cárcere. Este ensaio é uma convocação ao campo da saúde pública – e a todos os demais setores da sociedade – para que nos debrucemos com seriedade sobre a urgente necessidade do fim do cárcere e sobre os problemas e contradições que essa necessidade nos obriga a enfrentar coletivamente.
Sugestões de leitura
GILMORE, Ruth W. California Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal. São Paulo: Igrá Kniga, 2024.
NOGUEIRA, Angelita et al. Aleitamento materno no sistema penitenciário: sentimentos da lactante. Revista Ciência Plural, v. 6, n. 1, p. 18-31, 2020.
SANTOS, Beatriz O. et al. Aleitamento materno exclusivo entre pessoas em situação de cárcere: abordagem interseccional e abolicionista para análise da produção científica no Brasil entre 2000 e 2022. Saúde e Sociedade, São Paulo. v. 33, n. 1, p. 1-22, 2024.
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BEATRIZ OLIVEIRA SANTOS (beatriz_o.santos015@usp.br) é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública (PPG-SP) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil) e graduada em nutrição pela mesma mesma universidade.
LETÍCIA MARIA GIL (gilleticiamaria@gmail.com) é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil) e tem graduação em letras pela USP.
Publicado em: 23/07/2025
DILEMAS: REFLEXÕES é uma seção especial (blog) de DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL (ISSN Eletrônico: 2178-2792; ISSN Impresso: 1983-5922) e é publicada pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, integrante do INCT/CNPq INViPS. DILEMAS: REFLEXÕES não se responsabiliza por informações, opiniões e outros elementos dos textos aqui publicados. Estes são de inteira responsabilidade de seus autores



